A Abdução



Todos os dias, Carlos se levanta 15 minutos antes do horário de sair, se veste, come algo rapidamente e parte rumo a seu destino – a faculdade, normalmente. Alto, com cabelos sempre bagunçados e um visual despojado, ele não se importa muito com o que os outros pensam dele, mas mantém uma boa opinião sobre si mesmo.

Uma das coisas de que ele mais se orgulha é seu senso de orientação. Ao contrário de sua namorada, que se perde com frequência, Carlos sempre tem uma ideia clara a respeito de em qual direção está sua casa, sua faculdade ou algum outro ponto de referência. Não que ele encontre muita utilidade para essa habilidade, mas é confortável ter uma noção especialmente clara do mundo. Pelo menos, ele nunca teve medo de se perder.

A única coisa que o incomodava no momento eram suas notas, que estavam caindo desde que teve a ideia de mudar de faculdade. Por mais que a nova instituição fosse melhor e mais reconhecida pelo mercado de trabalho, ele se questionava se valia a pena sofrer tanto por um diploma. Com suas notas, ele chegou até a pensar quem nem ao menos conseguiria um orientador para o Trabalho de Conclusão de Curso.

Quando sua namorada disse que a instituição era obrigada a dar um orientador para todos os possíveis formandos já era tarde: no desespero, ele se inscreveu em um projeto que garantia a ‘amizade’ de um professor. Agora, ele era obrigado a comparecer a reuniões semanais, escrever artigos inúteis e até ir a congressos. O único ponto positivo é que também conseguia orientações semanais e o trabalho caminhava em um bom ritmo.

Claro que tudo tem seu preço – e essas orientações estavam bem caras. No momento, ele se encontrava em um antigo ônibus da faculdade, voltando de um congresso no interior do país. Ele nem lembrava o nome da cidade, só sabia que era um tanto ridículo. Saiu depois das aulas do período noturno, chegou de manhã, almoçou uma comida ruim, participou do congresso, jantou em uma padaria e agora voltava durante a madrugada. Duas noites absolutamente perdidas.

A viagem de ida foi péssima. Estrada esburacada, pista simples e faróis incômodos que não o deixavam dormir. Quando apresentou o trabalho, mais parecia um zumbi e nem se lembrava do que havia dito. Não que isso importasse muito. Sabia que tinha poucas chances de seguir com a carreira acadêmica e pouco se importava com os rumos do projeto. Queria apenas terminar aquilo tudo e ir embora. O detalhe é que o trajeto de volta também não era uma perspectiva reconfortante.

De qualquer forma, lá estava ele, atravessando o país em uma banheira ambulante com alguns estudantes esquisitos e um motorista devagar (será que esse cara ganha um extra para ficar viajando com os alunos?). Pelas placas na estrada, Carlos contava os quilômetros e se localizava em seu mapa mental. Sabia exatamente em que trecho do percurso estavam. Caso acontece alguma coisa com o motorista, poderia até salvar o dia e levar o ônibus de volta. Mesmo assim, não pensava em ficar de plantão. Queria apenas dormir, chegar o quanto antes e dormir mais um bom tanto.

Quando acordou, Carlos se questionou um pouco a respeito de onde estavam. Estava tão atordoado que demorou um pouco para se lembrar do congresso e da viagem de volta. Ficou pensando se não havia mais alguma coisa que precisava recordar, afinal, não estava no ônibus, nem na faculdade, nem em uma ambulância, nem em um posto policial, nem em qualquer lugar que já tivesse visto pelo menos uma vez na vida. O sol brilhava lá fora e ele se sentia absolutamente descansado.

A cama em que estava deitado era um pouco dura, mas estava quente e as cobertas brancas eram confortáveis. Toda a construção era de madeira e tinha um aspecto antigo. Carlos se levantou e não sentiu dores. Descartou parcialmente a hipótese do ônibus ter batido. Não estava machucado e sua família não parecia estar por perto. Ficou pensando o que mais poderia ter acontecido e se questionou sobre alienígenas ou aquelas doenças que causam perda de memória recente. Olhou para as suas mãos e elas, aparentemente, eram as mesmas de sempre, nem um pouco mais novas ou velhas.

Sua calça e seu casaco estavam em cima da cadeira, cuidadosamente dobrados. Vestia apenas sua roupa de baixo (inclusive as meias, que estranhos) e a camiseta, a mesma que usava na viagem – o que não deixava de ser um sinal positivo. Olhou pela janela e viu um sol de meio-dia brilhando forte. A temperatura estava amena.

Nesse momento, o desespero já começava a tomar conta. Onde estava? Será que era seguro sair? O apocalipse já começou? Será que ele foi arrebatado? Onde estão as outras pessoas? Com aquele sol, não conseguia saber ao certo nem os pontos cardeais, quanto mais a direção certa para voltar para cada. Sentiu vontade de sentar na beirada da cama e chorar, mas isso era uma coisa estúpida para fazer.

Descobriu sua mochila em um canto do quarto e viu que seu celular com GPS estava sem bateria. Maldição! Por que ele havia esquecido de levar o carregador para aquele congresso idiota? A bateria deveria ser suficiente para chegar e ligar para viessem buscá-lo, mas agora já deveria ter acabado há horas. Sua família deveria estar absolutamente desesperada. Talvez até já tivessem mandado a polícia atrás dele.

Uma criança correndo foi o único barulho que ouviu. Percebeu o quanto estava sendo idiota e abriu a porta. Ao final do corredor, vozes conversavam em um idioma estranho. Gelou. A hipótese de ter sido levado por extraterrestres ainda não estava totalmente descartada. Então viu o menino que corria. Era loiro e muito branco, daquele tipo que deve ter olhos azuis, mas isso Carlos não conseguiu ver.

Respirou fundo e percebeu que talvez as vozes falassem alemão ou holandês ou russo ou qualquer coisa que ele não conhecesse bem. Sua namorada é que era boa para identificar idiomas. Mas pensar nela fez com que ele se sentisse mal, com um aparto na garganta. Ele precisava fugir, simplesmente precisava. Talvez houvesse a necessidade de atravessar oceanos ou pegar trens – seria uma grande aventura. O problema seria a fome e o dinheiro para pagar o transporte. Provavelmente, o melhor seria se apresentar às autoridades de uma vez por todas.

Então, uma cabeça apareceu no corredor. Era um rosto com algumas rugas, olhos azuis e cabelos loiros misturados com fios grisalhos. O homem sorria para Carlos. Ele teve a leve sensação de que já tinha visto aquela pessoa, mas não conseguia se lembrar muito bem de onde. Até que o senhor se apresentou como o motorista do ônibus da faculdade.

A vergonha foi imensa. Pelo jeito, sua bateria já havia acabado quando chegaram da viagem. Ninguém o esperava ainda e estavam tendo dificuldades em acordá-lo. Não fez nenhum amigo na viagem e as pessoas nem sequer conheciam seu nome. Como era sábado, a faculdade estava fechada e não havia a quem recorrer. O motorista, então, deixou o ônibus na garagem e o levou – no colo – até seu próprio carro. Foi o motorista, também, que tirou sua roupa e o colocou para dormir no quarto de visitas.

Embora estivesse sendo tratado com cordialidade e tivesse o telefone a sua disposição para ligar para a família (que estava realmente desesperada pela ausência prolongada), Carlos estava extremamente desconfortável. A dona da casa não parecia nem um pouco feliz em ter um estranho dormindo em seus lençóis brancos e serviu o café da manhã com um mal humor visível. Mesmo assim, estava uma delícia.

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