Um perfil comum



Ricardo tem 36 anos, 1,78 m e pesa aproximadamente 80 kg (na verdade, ele não se preocupa muito com peso). Seus cabelos costumavam ser castanhos, mas agora os fios brancos prejudicam um pouco a percepção da cor. Os olhos, no entanto, têm uma tonalidade de castanho-escuro que contrasta bem com sua pele branca. Costumava se considerar um aquariano típico, mas perdeu o interesse em signos em algum momento da adolescência.

Há dois anos, Ricardo se divorciou de Tânia, a única namorada fixa que teve. Eles se conheceram muito novos e o relacionamento foi se desgastando aos poucos. No fundo, ele não culpa nenhum dos dois pelo fim – é até bastante racional nesse aspecto –, mas não entende o porquê dela ter se afastado tanto. Atualmente, Tânia mora em Florianópolis e ele ficou sabendo por terceiros da mudança.

Embora tenha nascido em Joinville, Ricardo se mudou ainda pequeno para Brusque, também em Santa Catarina. Ele aproveitou muito o fato de viver em uma cidade pequena e sem grandes perigos, assim, nunca considerou seriamente sair de perto dos pais. Trabalha como contador há seis anos em uma mesma empresa e considera a si como um profissional competente, do tipo que sabe fazer de tudo e todos podem contar. Também não arruma brigas e engole sapos sempre que necessário.

Ao mesmo tempo, Ricardo se sente mal por não ter um grande diferencial, algo que o permita crescer. Cada vez que um colega consegue uma promoção ou recebe uma oferta de emprego em outro lugar, fica ciente de seu perfil inadequado para liderança ou até mesmo de sua falta de espontaneidade. Um episódio um tanto traumático aconteceu em seu emprego anterior, quando foi demitido como parte de um programa de ‘corte de gastos’. Naquele período, pensava muito sobre como a época de seus pais era melhor, pois as pessoas podiam se aposentar sem nunca ter mudado de empresa.

De qualquer modo, para o futuro, Ricardo pretende se manter atualizado em questões de trabalho. Ele acredita que é importante captar o máximo de lições possíveis na vida. Assim, fica frustrado quando não consegue atender às expectativas de alguém, quando falha em atingir uma meta ou faz algo errado. Sem que ele perceba, essa característica se transforma em vaidade e ele acaba abrindo mão do que quer fazer para agradar aos outros, que aparentemente deveriam esperar alguma coisa dele. O problema é que isso implica em uma exigência pessoal muito grande, fazendo que sua autocrítica tenha mais peso do que deveria e ele se sinta negligenciado ou incompreendido.

Na época da faculdade, Ricardo teve várias dúvidas quanto ao curso, mas não se importava de trabalhar bastante. Crente em seus valores, ele usava de organização e perfeccionismo para manter seus padrões, ao mesmo tempo em que priorizava uma atitude calma, controlada e respeitosa com todos. Inclusive, certo grupo em sua turma o interpretava como arrogante e ele teve dificuldades em entender o que estava realmente acontecendo.

Mesmo sem ser um grande apaixonado, Ricardo gosta de sua profissão e vai trabalhar todos os dias sem sofrimento (embora às vezes não seja fácil sair de uma cama quentinha para enfrentar o inverno). Sua principal motivação no momento é pagar as parcelas de seu belo carro, um modelo dos sonhos do qual sente orgulho toda vez que olha para a garagem. Além disso, tem o costume de jogar sinuca com os colegas toda sexta-feira.

Não que tenha amigos próximos no trabalho. Seus principais companheiros são os do futebol de terça-feira. Alguns amigos de tempos mais antigos, que também são mais próximos e sabem mais sobre sua vida. Um ou dois, inclusive, são da época de sua terceira série do primário, quando voltou à escola depois de mais de um semestre afastado. Na época foi bem traumático perder um ano, mas ele havia ficado doente e, sem conseguir andar de tanta dor, não tinha condições de frequentar a escola.

Depois desse período conturbado, tudo na vida pareceu mais fácil por um tempo e até a puberdade passou sem grandes transtornos. Ricardo gostava de festas e aproveitou como pôde sua adolescência em uma cidade pequena. Como começou a namorar Tânia muito cedo, em pouco tempo adquiriu um senso maior de responsabilidade. Para completar, também era o mais velho do grupo e foi o primeiro a conseguir licença para dirigir.

Essa fama de certinho ganhava credibilidade com as roupas que vestia. Sempre com uma calça jeans sem detalhes e de corte reto e camisas polo bem comportadas, ele possuía o visual mais conversador do grupo. Mesmo que os amigos rissem, as mães de suas namoradinhas gostavam e ele não demorou em conseguir até a aprovação dos pais de Tânia para levar a garota ao cinema. Foi uma boa época e ele ainda se lembrava do primeiro beijo dos dois, que aconteceu na esquina da casa dela.

Na passagem da adolescência para a vida adulta, Ricardo apenas trocou o tênis pelo sapato, mas ainda tinha dificuldades em substituir a mochila pela pasta de couro.

A Abdução



Todos os dias, Carlos se levanta 15 minutos antes do horário de sair, se veste, come algo rapidamente e parte rumo a seu destino – a faculdade, normalmente. Alto, com cabelos sempre bagunçados e um visual despojado, ele não se importa muito com o que os outros pensam dele, mas mantém uma boa opinião sobre si mesmo.

Uma das coisas de que ele mais se orgulha é seu senso de orientação. Ao contrário de sua namorada, que se perde com frequência, Carlos sempre tem uma ideia clara a respeito de em qual direção está sua casa, sua faculdade ou algum outro ponto de referência. Não que ele encontre muita utilidade para essa habilidade, mas é confortável ter uma noção especialmente clara do mundo. Pelo menos, ele nunca teve medo de se perder.

A única coisa que o incomodava no momento eram suas notas, que estavam caindo desde que teve a ideia de mudar de faculdade. Por mais que a nova instituição fosse melhor e mais reconhecida pelo mercado de trabalho, ele se questionava se valia a pena sofrer tanto por um diploma. Com suas notas, ele chegou até a pensar quem nem ao menos conseguiria um orientador para o Trabalho de Conclusão de Curso.

Quando sua namorada disse que a instituição era obrigada a dar um orientador para todos os possíveis formandos já era tarde: no desespero, ele se inscreveu em um projeto que garantia a ‘amizade’ de um professor. Agora, ele era obrigado a comparecer a reuniões semanais, escrever artigos inúteis e até ir a congressos. O único ponto positivo é que também conseguia orientações semanais e o trabalho caminhava em um bom ritmo.

Claro que tudo tem seu preço – e essas orientações estavam bem caras. No momento, ele se encontrava em um antigo ônibus da faculdade, voltando de um congresso no interior do país. Ele nem lembrava o nome da cidade, só sabia que era um tanto ridículo. Saiu depois das aulas do período noturno, chegou de manhã, almoçou uma comida ruim, participou do congresso, jantou em uma padaria e agora voltava durante a madrugada. Duas noites absolutamente perdidas.

A viagem de ida foi péssima. Estrada esburacada, pista simples e faróis incômodos que não o deixavam dormir. Quando apresentou o trabalho, mais parecia um zumbi e nem se lembrava do que havia dito. Não que isso importasse muito. Sabia que tinha poucas chances de seguir com a carreira acadêmica e pouco se importava com os rumos do projeto. Queria apenas terminar aquilo tudo e ir embora. O detalhe é que o trajeto de volta também não era uma perspectiva reconfortante.

De qualquer forma, lá estava ele, atravessando o país em uma banheira ambulante com alguns estudantes esquisitos e um motorista devagar (será que esse cara ganha um extra para ficar viajando com os alunos?). Pelas placas na estrada, Carlos contava os quilômetros e se localizava em seu mapa mental. Sabia exatamente em que trecho do percurso estavam. Caso acontece alguma coisa com o motorista, poderia até salvar o dia e levar o ônibus de volta. Mesmo assim, não pensava em ficar de plantão. Queria apenas dormir, chegar o quanto antes e dormir mais um bom tanto.

Quando acordou, Carlos se questionou um pouco a respeito de onde estavam. Estava tão atordoado que demorou um pouco para se lembrar do congresso e da viagem de volta. Ficou pensando se não havia mais alguma coisa que precisava recordar, afinal, não estava no ônibus, nem na faculdade, nem em uma ambulância, nem em um posto policial, nem em qualquer lugar que já tivesse visto pelo menos uma vez na vida. O sol brilhava lá fora e ele se sentia absolutamente descansado.

A cama em que estava deitado era um pouco dura, mas estava quente e as cobertas brancas eram confortáveis. Toda a construção era de madeira e tinha um aspecto antigo. Carlos se levantou e não sentiu dores. Descartou parcialmente a hipótese do ônibus ter batido. Não estava machucado e sua família não parecia estar por perto. Ficou pensando o que mais poderia ter acontecido e se questionou sobre alienígenas ou aquelas doenças que causam perda de memória recente. Olhou para as suas mãos e elas, aparentemente, eram as mesmas de sempre, nem um pouco mais novas ou velhas.

Sua calça e seu casaco estavam em cima da cadeira, cuidadosamente dobrados. Vestia apenas sua roupa de baixo (inclusive as meias, que estranhos) e a camiseta, a mesma que usava na viagem – o que não deixava de ser um sinal positivo. Olhou pela janela e viu um sol de meio-dia brilhando forte. A temperatura estava amena.

Nesse momento, o desespero já começava a tomar conta. Onde estava? Será que era seguro sair? O apocalipse já começou? Será que ele foi arrebatado? Onde estão as outras pessoas? Com aquele sol, não conseguia saber ao certo nem os pontos cardeais, quanto mais a direção certa para voltar para cada. Sentiu vontade de sentar na beirada da cama e chorar, mas isso era uma coisa estúpida para fazer.

Descobriu sua mochila em um canto do quarto e viu que seu celular com GPS estava sem bateria. Maldição! Por que ele havia esquecido de levar o carregador para aquele congresso idiota? A bateria deveria ser suficiente para chegar e ligar para viessem buscá-lo, mas agora já deveria ter acabado há horas. Sua família deveria estar absolutamente desesperada. Talvez até já tivessem mandado a polícia atrás dele.

Uma criança correndo foi o único barulho que ouviu. Percebeu o quanto estava sendo idiota e abriu a porta. Ao final do corredor, vozes conversavam em um idioma estranho. Gelou. A hipótese de ter sido levado por extraterrestres ainda não estava totalmente descartada. Então viu o menino que corria. Era loiro e muito branco, daquele tipo que deve ter olhos azuis, mas isso Carlos não conseguiu ver.

Respirou fundo e percebeu que talvez as vozes falassem alemão ou holandês ou russo ou qualquer coisa que ele não conhecesse bem. Sua namorada é que era boa para identificar idiomas. Mas pensar nela fez com que ele se sentisse mal, com um aparto na garganta. Ele precisava fugir, simplesmente precisava. Talvez houvesse a necessidade de atravessar oceanos ou pegar trens – seria uma grande aventura. O problema seria a fome e o dinheiro para pagar o transporte. Provavelmente, o melhor seria se apresentar às autoridades de uma vez por todas.

Então, uma cabeça apareceu no corredor. Era um rosto com algumas rugas, olhos azuis e cabelos loiros misturados com fios grisalhos. O homem sorria para Carlos. Ele teve a leve sensação de que já tinha visto aquela pessoa, mas não conseguia se lembrar muito bem de onde. Até que o senhor se apresentou como o motorista do ônibus da faculdade.

A vergonha foi imensa. Pelo jeito, sua bateria já havia acabado quando chegaram da viagem. Ninguém o esperava ainda e estavam tendo dificuldades em acordá-lo. Não fez nenhum amigo na viagem e as pessoas nem sequer conheciam seu nome. Como era sábado, a faculdade estava fechada e não havia a quem recorrer. O motorista, então, deixou o ônibus na garagem e o levou – no colo – até seu próprio carro. Foi o motorista, também, que tirou sua roupa e o colocou para dormir no quarto de visitas.

Embora estivesse sendo tratado com cordialidade e tivesse o telefone a sua disposição para ligar para a família (que estava realmente desesperada pela ausência prolongada), Carlos estava extremamente desconfortável. A dona da casa não parecia nem um pouco feliz em ter um estranho dormindo em seus lençóis brancos e serviu o café da manhã com um mal humor visível. Mesmo assim, estava uma delícia.

Uma breve biografia




João Augusto, 28 anos, negro, alto, morador de rua, usuário de maconha. Veio de São Paulo para Curitiba depois de passar por uma breve temporada na prisão e diz ter largado a cocaína há dois anos. Seu endereço atual é no calçadão da Rua XV de Novembro. Alega conhecer criminosos perigosos, inclusive do Primeiro Comando da Capital, o PCC.

O jeans está rasgado e as pessoas evitam olhar para ele quando passam por perto. Ele conta para quem quiser ouvir sobre as estratégias de aliciamento do PCC e seu tempo na prisão ou em diversas instituições de recuperação de drogados. Consegue comida nas lanchonetes, onde alguns atendentes dão pão com manteiga. Os donos não se importam. Preferem manter uma relação cordial com os moradores de rua a fazer confusão.

Na igreja, João Augusto também é conhecido como um sujeito boa praça, calmo e um excelente cantor. Está considerando entrar para o coral e até participar de uns concursos onde poderá soltar a voz e mostrar suas composições. Intimamente, se considera um artista e ainda lembra dos tabefes que recebeu da mãe quando disse que queria parar de trabalhar para ir estudar música.

Nos tempos da escola, adorava as aulas de português e guarda com carinho as memórias da professora que trazia fotocópias de tirinhas para a sala de aula. Seu momento preferido, no entanto, era o recreio, quando ele e os amigos saíam para incomodar as meninas. Passavam a mão nas bundas das garotas só para ver elas pularem e xingarem, depois saíam correndo.

Um dia, o namorado de uma menina, que estudava no segundo grau, ameaçou encher o grupo todo de porrada. Eles nem perceberam que eram quatro contra um, imploraram para o zelador para que os deixassem sair mais cedo e escaparam antes do grandalhão chegar. Hoje em dia, ele ri quando lembra da história. Eram tempos divertidos.

A vida em Curitiba também não é fácil. Ele veio para se tratar do vício em cocaína, gostou da cidade e foi ficando. O único problema é a falta de emprego. Nas eleições passadas, até tinha conseguido alguma coisa, mas nada surgiu desde então. Sem ter onde morar, também não conseguia algo fixo – e sem estabilidade não encontrava lugar para morar. Mas a moça daquele café disse que iria dar uma ajuda e ele era muito agradecido.

Recomeço?




Faz muito tempo que esse blog está parado e eu confesso ter sérios problemas em manter mais de um projeto ao mesmo tempo. No entanto, sinto falta de escrever coisas mais pessoais e esse espaço aqui sempre foi guardado para isso.

Não prometo nada. Dei uma repaginada no visual e vou tentar postar aqui os textos de um curso de redação que estou fazendo. Só não vou dizer qual era a proposta. Prefiro que as pessoas leiam apenas o resultado final ao invés de perderem seu tempo analisando se acertei ou não o que foi solicitado. Só não garanto que ler meus textos também não será um desperdício de atenção.

Talvez eu poste coisas pessoais que ficaram pelo caminho ao longo desses anos. Só não garanto.

Até a próxima!

Então...

O que dizer sobre o blog estar parado há um mês?